As cadeiras, como de praxe, rangiam. A sala da cinemateca do MAM, como de praxe, estava vazia, um ou outro cabeça de bagre, perdidos na noite do cinema. Não sabia o que esperar, nunca ouvira muito falar de Olney, sabia do filme, ou melhor, de sua fama. O único cineasta a ser processado e torturado pela realização de um filme. Quando li, me instiguei. Eu nunca antes ouvira falar deste homem, pouco sabia deste filme. Como era possível? O único cineasta que, na época da ditadura, foi preso, interrogado, torturado e processado por um filme, e eu nunca ouvira falar. Pela janela do meu quarto, os homens caminham, quantos sabem? Doutor, minha terra tem amnésia e não lembra nem da década passada. E lá, através da lâmina de luz expulsa do projetor, uma sala de aula, estudantes, cortes abruptos, enérgicos – mas não raivosos, algo intenso e expansivo como a esperança. Quantos filmes, meu deus, quantos trabalhos, poesias, peças, danças e ritos, quanta coisa nos passa sem a certeza do porvir, quanta coisa a peneira da história abandona como um filho bastardo. A fina e delicada esperança, algo que se desenvolve e matura no seio da juventude, nossa idílica e muitas vezes infértil esperança. Um canto desesperado ao amor e à liberdade. Com Olney, percebo que a esperança é, antes de tudo, uma maneira de se integrar, de finalmente sentir – mesmo que não seja, mesmo que ilusão, mesmo que mesmo – comungado com seu tempo, sua terra, seu povo. A esperança como o elemento possível que nos devolva ao todo, às engrenagens do tempo. O desespero desperta. O acordar, a aurora, é um eterno nascer. Quando começa, você não sente, você não sabe o que fazer, começa a projeção, e você é jogado, desalojado, está diante e confrontado, uma imagem após outra após outra após outra. Quanta esperança nos preenche, nos move. Depois de tanto sonhar, entra a luz e rasga a confortante fronha dos sonhos, e novamente é cama, lençol, e o barulho. É preciso despertar, sussurra-se. O nosso sono é tão letárgico, tão antigo, sonhamos que somos menos, sonhamos que somos mais, mas somos sempre menos, ah, o passado é um fardo, sempre um fardo. Desde início se sabia: esta terra não vai dar certo. Tudo dá é uma falácia, olha aqui, vê direito, é uma terra malfadada, prenha de corrupções e erros, e danos, uma orgia de toda espécie, quando vem, quando vem a salvação, senão aqui, teremos adiante, depois e depois. Mãe, tenho vergonha de mim, de meus pares, mãe, nasci gauche na vida, não tem jeito. Ô, síndrome. E se lembrássemos, se nos olhássemos, se tivéssemos mais carinho, nosso passadozinho, meu querido se, tudo que queremos esquecer, esconder, tanta coisa ruim, mas de tudo resta um pouco, quanto Drummond num dia de domingo, a vida é contínua e sempre, não aceita sinal vermelho, não para no transito, tudo o que existiu um dia, que nasceu, existe, não tem jeito, não dá pé. Essa manhã cinzenta exala, jazz que não termina, não procuro a saída, não quero a salvação, quero aquilo, uma sinceridade, compreensão do que eu tenho, mas apostando tudo como quem se suspeita possível. Nenhum sonho é possível, não gosto da utopia, gosto daquilo, aquilo que passa, roça, aquilo que me impede de te ignorar, e preciso me relacionar por que já estou, antes de mim, do meu querer, um construtor que olhou e viu além, achando graça na cor do cimento, da água. A fala cotidiana é um poema esquecido, fecho os olhos para ouvi-lo, e me sobe um zumbido, um trombeta, olha pra câmera, diz, eu pego e saio filmando, eu monto escondido, me dá material que eu uso, eu passo para quem quiser ver, mas não me peça explicação, não me peça um ensaio, amor, você já deveria saber que amar é como o mundo, cada um cria o seu. A Feira é tão longe daqui, rio quarenta graus e não moro nem perto da praia. E elas voltam, as imagens, e mais ainda o ritmo, elas permanecem calmas e presas, à espreita, esperando a oportunidade de arrombar as grades e correr. Viver é como a memória, quando se viu, já passou – Olney preserva e se dedicou ali ao ato de despertar – goste e/ou desgoste.